
É fodido andar assim, a viver pela metade, fingir que somos alguém que merece ser ouvido, um poço de palavras bonitas e curiosidades, quando só nos assalta a concordância do verbo "avoir", no presente do indicativo, olhar-me ao espelho e procurar o brilhozinho do 'antigamente', quando já só me resta recorrer ao eye-liner barato da loja dos chineses, encontrar-te a meio caminho e tomar-me das tuas dores, pôr as minhas de parte porque é mais fácil, dá menos que pensar e acabo a parecer uma tipa digna de confiança, forçar uma bebedeira numa festa, os olhos turvos e as beiças inchadas, feita puta barata, a ver se alguém me toma num canto e me lambe as feridas, dá-me o teu número e pode ser que nos voltemos a encontrar, quando tu estiveres só e eu sozinha estiver, em qualquer rua escura ou no banco do carro que ainda andas a pagar, mulher a arder de novo, é o que sou, quando não me ligas, não me atendes, e me apetece quebrar-me em estilhaços como este espelho, arrancar cabelos, cortar-me ás postas, fazer trinta por uma linha, regressar á escola francesa e pedir que me aceitem nas turmas precoces, que me ensinem a cantar o "frère jacques, frère jacques, dormez-vous?", que me deixem dormir a sesta e almoçar na cantina tudo até ao fim, "quem deixar no prato, não se levanta", percorrer o jardim de inverno da escola de ballet, de sabrinas nos pés e puxo arrepelado, de cor-de-rosa, azul ou vermelho, com o piano a acompanhar numa sinfonia de Tchaikovsky, a vara a marcar compasso e o reflexo no espelho dos projectos de bailarina, sentar-me á chinês nas bancadas do liceu, a fumar os primeiros cigarros, a roer as unhas e a mastigar verniz, a olhar-lhes as curvas e a tolher vontades, a partilhar sonhos e aventuras atrás do pavilhão, voltar áquele dia mal-fadado e trocar-lhe as voltas, trazer-te comigo, mais o pleasures da estee lauder e as essencias dos teus cosméticos, que me trazem um cheiro almiscarado que nao se reproduz, raptar-te e guardar-te na algibeira, contígua dos caramelos e dos trocos que me davas para um sorvete no jardim, ser tão actriz como em sonhos de infância e perpetuar a peça pela vida fora, aplausos em uníssono e elogios sussurrados em espanto, a comer mel no camarim e a aclarar a garganta ao som da Maria Callas, fosse eu como ela, esbarrar-me contigo, a fingir-me distraída e absorta e a achar-te adorável, com esse jeito meio chic mas ordinário, e eu a apoderar-me de um cigarro arrogante, cheque-mate neste jogo de sedução, e a achar que se estivesse nos meus trinta e poucos é que era, que aos vinte ninguém é levado a sério, sentar-me numa cadeira com vista para o mar, tentar lembrar-me do que é ser-se genuíno e acabar a encenar outra simulação, outra didascália a que me obrigo, nao vá eu constatar que afinal nao valho um tostão furado e a singularidade já não mora aqui, apagar o cigarro com o sapato, á luz de um lampião, a cabeça num rodopio de memórias e desejos secretos, o vento a cortar-me a pele e os lábios gretados pelo frio, dar por mim sozinha no sepulcro da noite e fingir que é fácil ir morrendo.