terça-feira, 31 de março de 2009
Passé Simple.
É fodido andar assim, a viver pela metade, fingir que somos alguém que merece ser ouvido, um poço de palavras bonitas e curiosidades, quando só nos assalta a concordância do verbo "avoir", no presente do indicativo, olhar-me ao espelho e procurar o brilhozinho do 'antigamente', quando já só me resta recorrer ao eye-liner barato da loja dos chineses, encontrar-te a meio caminho e tomar-me das tuas dores, pôr as minhas de parte porque é mais fácil, dá menos que pensar e acabo a parecer uma tipa digna de confiança, forçar uma bebedeira numa festa, os olhos turvos e as beiças inchadas, feita puta barata, a ver se alguém me toma num canto e me lambe as feridas, dá-me o teu número e pode ser que nos voltemos a encontrar, quando tu estiveres só e eu sozinha estiver, em qualquer rua escura ou no banco do carro que ainda andas a pagar, mulher a arder de novo, é o que sou, quando não me ligas, não me atendes, e me apetece quebrar-me em estilhaços como este espelho, arrancar cabelos, cortar-me ás postas, fazer trinta por uma linha, regressar á escola francesa e pedir que me aceitem nas turmas precoces, que me ensinem a cantar o "frère jacques, frère jacques, dormez-vous?", que me deixem dormir a sesta e almoçar na cantina tudo até ao fim, "quem deixar no prato, não se levanta", percorrer o jardim de inverno da escola de ballet, de sabrinas nos pés e puxo arrepelado, de cor-de-rosa, azul ou vermelho, com o piano a acompanhar numa sinfonia de Tchaikovsky, a vara a marcar compasso e o reflexo no espelho dos projectos de bailarina, sentar-me á chinês nas bancadas do liceu, a fumar os primeiros cigarros, a roer as unhas e a mastigar verniz, a olhar-lhes as curvas e a tolher vontades, a partilhar sonhos e aventuras atrás do pavilhão, voltar áquele dia mal-fadado e trocar-lhe as voltas, trazer-te comigo, mais o pleasures da estee lauder e as essencias dos teus cosméticos, que me trazem um cheiro almiscarado que nao se reproduz, raptar-te e guardar-te na algibeira, contígua dos caramelos e dos trocos que me davas para um sorvete no jardim, ser tão actriz como em sonhos de infância e perpetuar a peça pela vida fora, aplausos em uníssono e elogios sussurrados em espanto, a comer mel no camarim e a aclarar a garganta ao som da Maria Callas, fosse eu como ela, esbarrar-me contigo, a fingir-me distraída e absorta e a achar-te adorável, com esse jeito meio chic mas ordinário, e eu a apoderar-me de um cigarro arrogante, cheque-mate neste jogo de sedução, e a achar que se estivesse nos meus trinta e poucos é que era, que aos vinte ninguém é levado a sério, sentar-me numa cadeira com vista para o mar, tentar lembrar-me do que é ser-se genuíno e acabar a encenar outra simulação, outra didascália a que me obrigo, nao vá eu constatar que afinal nao valho um tostão furado e a singularidade já não mora aqui, apagar o cigarro com o sapato, á luz de um lampião, a cabeça num rodopio de memórias e desejos secretos, o vento a cortar-me a pele e os lábios gretados pelo frio, dar por mim sozinha no sepulcro da noite e fingir que é fácil ir morrendo.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Subjectum Juris.
Eu não estava bem, sublinho. Continuava a ser assaltada por uma tristeza mortificante, que me obrigava a fechar os estores e a deitar-me no chão. Nessas horas horizontais, e só nessas horas, desenhavam-se á minha frente mil e um cenários de ressurreição, vistos á luz de um caleidoscópio, que só se esfumavam quando a porta se entreabria. Tu entravas, derramavas a tua complacência sobre mim, esfregavas-me as nódoas do vestido, levavas-me a colher á boca e findavas com uma palmadinha nas costas, um afago no cabelo, "melhor assim, não?". Eu ensaiava um sorriso, fingia 'sensibilidade e bom senso', expectando um embalo até adormecer , encolhida no teu colo. Tu esquivavas-te ao abraço, sacudias a roupa e fechavas a porta atrás de ti, sem hesitações. E era assim, nesse gesto impensado, que sentenciavas os restantes dias á mesma rotina; expectativas logradas, esperança em pó no cinzeiro. Efabulava, enquanto mordia os dedos ou raspava as unhas no soalho, mil e uma formas de auto-extinção, qual ressurreição qual quê. E, nesse campo, a imaginação tinha limites extensos. Engolia um par de meias e morria por sufocação, de lábios pintados, a constrastar com a cianose. Cobria o corpo com gasolina e ateava-lhe o fogo, fazendo jus á conotação primeva de purificador, que este tinha. Aspirava uma folha de ouro, mergulhava o secador de cabelo no meu banho de imersão, ou suspendia o corpo em ponto fixo, por meio do laço que constringe o pescoço, a esboçar um sorriso. Já as meias estavam dobradas, os fósforos á mão, o secador ligado e a corda ao dependuro, e tu fazias-te notar.
Entravas, derramavas a tua complacência sobre mim, esfregavas-me as nódoas do vestido, levavas-me a colher á boca e findavas com uma palmadinha nas costas, um afago no cabelo, "melhor assim, não?".
domingo, 1 de março de 2009
Últim(o)acto.
Let's put things straight.
E antes que te convencas do contrário, deixa-me dizer que não sou uma principiante nestas coisas do amor. Os meus vinte anos são tenros e cheiram a leite, mas levam ás costas outros tantos de batalhas até á morte e duelos de titãs. Este jogo do silêncio e dos travões a derrapar no gelo , já eu o fiz há muito tempo, sem armaduras nem capacetes, chagas feitas corpo. Este braço-de-ferro cordial, de irritações mudas e conversas ofendidas, é-me tão familiar como o afecto a meio-gás que proporciona. Uma festa, mas só ás vezes. Um abraço quando for conveniente. Um beijo aqui e ali, a ter a certeza que é bem-vindo e não deixa mácula, cuidado que alguém vê. Todas as estratégias de não-fazer e não-dizer, já eu pus em prática mil vezes, ensaiadas e estudadas ao pormenor, dissecadas em frente ao espelho. Não matam, mas vao moendo, até reduzirem a pó o gineceu de qualquer flor, por mais que esta queira vingar. Como te disse, eu não sou principiante nestas coisas do amor. Palavras ácidas e díficeis, como-as eu ao pequeno-almoço, de cara lavada e sorriso no rosto, costas prontas para o açoite verbal.
Na verdade, sou é meia-mulher meio-bicho, uma fera ferida como dizia o outro, que morre de medo de outra surra.
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