quarta-feira, 29 de outubro de 2008

P.S -


Não sei se sabes. Na verdade, acho que nunca fiz questão que o percebesses. Soavam melhor as palavras de indiferença ou de provocação, a deixar transparecer, de leve, esta preocupação e carinho dilacerantes que me rasgam o peito.Só de leve, não fosses tu acreditar que me roubaste para ti e que a possibilidade de fuga já não existe.Agradava-me mais a ideia de me manter á tona, evitando mergulhar de cabeça neste emaranhado de emoções e sensações indizíveis, sem me aperceber que a superfície já estava demasiado longe para que pudesse alcancá-la.Sem confidenciar que te imagino de noite, na minha cama, tão real como a dor de saber que não estás, para que pudesse ouvir-te respirar. Sim. Ouvir-te bastava. Sem te contar que cada olhar teu na minha direcção, traz a mim o mundo inteiro. E que cada milímetro de epiderme, cada fibra capilar, cada ruga tatuada pelo tempo, representam perigosamente a eminência do fim, mesmo que a vida te prometa a perpétua felicidade de quem tem tudo pela frente.

Não sei se sabes.

Na verdade,acho que nunca fiz questão que o percebesses.

Mas é sempre em ti que penso.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

04:32


Avanças e retrocedes sucessivamente. A tua identidade sofre metamorfoses e mutações, em vez de se reafirmar. Rodopias num delírio visual e auditivo, em frente á televisão, de comando na mão, para depois desviares o olhar e serem essas as imagens que continuas a ver. Para depois a tua vida se tornar num filme que viste e gostaste especialmente, daqueles "que tocam" e fazem chorar, que sonhaste ver de mão dada com alguém mas acabaste por ver sozinho, entregue á tua fealdade e deprimente simplicidade de seres só mais um. Para depois te sentares numa mesa demasiado pequena, a ingerires uma refeição que não cozinhaste e que tráz em si o sabor amargo da falta que te faz a tua mãe.
Comes e amaldiçoas fervorosamente aqueles cujas vidas são "normais" e têm tudo aquilo que não tens, sem te aperceberes que a insatisfação está impregnada em ti e nos demais,e que a verdade é feia e é essa.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Palavras.



Olhó Robot.




Hoje acordei assim, ao som dos Saladas de Frutas, enrolada num sofá com vista para o mar. "É para o menino e para a menina, olhó... Trabalha muito e gasta pouco, olhó..." E lá fora, um bébe que chora, a música de um telemóvel; o choradinho do trânsito; uma gargalhada colorida de criança, uma sirene, o nervosismo da gaivota. E as palavras.
Enquanto o resto fervilha, elas estão em banho-maria, entre as entranhas e a boca, á espera da conclusão do processo de selecção para sair. Confio cegamente nelas,na força que levam quando pronunciadas, de forma eloquente e em voz alta, para que se ouça o que têm para dizer. E no entanto, errei.E fi-lo tremendamente. Servi-me das palavras amputadas,das insípidas,das sem-história e das feinhas, que só trazem consigo um ruído animal e desinteressante, e deixam no outro, uma enorme sensaçao de decepção.

Se o arrependimento matasse...

domingo, 5 de outubro de 2008

Pretérito Imperfeito.


Gostava de ti como és, essa arrogância escondida, esse andar quase cambaleante de pés para dentro , a estranheza,a dureza e tudo. Eu, desbocada e paranóica, que gargalho demasiado alto, que preferia refugiar-me em teatros perigosos e fugir ao teu whisky-cola, gostava de ti como és. Eu, a camisola que não diz com a saia, a puta da mania da racionalização e de verbalizar tudo o que sente, os incontáveis anéis nos dedos e os caracóis que te turvavam a vista quando mergulhavas no meu ombro.Eu, que quase não corto o cabelo e roo as unhas até ao sabugo pelos nervos de te encontrar, que me sento dobrada para a frente, sobre os joelhos, geralmente descalça pelo chão. Que me dobrava sobre ti e te fazia rir e corar de vergonha, para depois te encher de demasiados beijos até me chamares "chata" e me empurrares com mais força do que a que o momento pedia. Gostava de ti como és, misteriosa e sádica, mais fria e distante, mas sensível ao meu toque de menina carente. Tu, a que se perdia por caminhos que eu não sabia percorrer mas que, a todo o custo, palmilhei á tua procura. Tu, a que fazia asneiras e pedia desculpa meio a sério meio a brincar, entre vozes anasaladas e carinhosas e pedidos de desculpa. Eu, a que chegou cheia de sonhos na algibeira e os perdeu pelo caminho, acabando com um peito duro como pedra, onde não dá prazer deitar a testa.